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domingo, 14 de março de 2010

CAMISETAS MANCHADAS

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Regatas brancas, surradas de um tempo militar, camisas de manga longa, camisetas com ou sem estampa. Um armário inteiro aberto e revirado, de uma bagunça proporcional. “Um garoto dessa idade deveria ser mais organizado”, resmunga Léia. A faxineira do apartamento de André, que faz uma diária por semana, duas em casos de calamidade.

Essa era uma cena que se repetia, sempre a cada sete desses dias, uma mistura amena de peças se revezando no cesto de roupa suja, além de um punhado empilhado no fundo do pequeno guarda-roupa de solteiro.

Haviam uns dois anos que André não tinha alguém mais, fixo. Eram romances rápidos e encontros casuais, sem sentido e enfadonhos. Mas para um rapaz de 27 anos, as marcas já eram, podemos dizer, como um prelúdio de auto-conhecimento. Isso parece só bonito, mas nada mais é do que uma proteção que só se aprende errando, que só se conquista sofrendo.

Como quem finge não querer nada, Léia um dia juntou essas roupas todas em uma sacola. Eram todas as peças que ela, em sua experiência naquele apartamento, conhecia e, sabia que não precisavam estar ali. “Está tudo sem uso meu Deus”, repetia a si mesma.

Antes de ir embora, porém, aguardou mais meia hora até André chegar da livraria. Ele era gerente e amava o cheiro daquele lugar. Cheiro de apego, aroma de prateleiras de mogno e os perfumes espalhados no ar, de clientes que entravam e saiam o dia todo.

Então quando a porta se abriu, Léia estava assistindo televisão. Levantou, apertou o botão e desligou.
_ Oi Léia, achei que já tivesse ido.
_ Ah, queria ver uma coisa contigo.
Então ela puxou a sacola de papel preta de cima do sofá e colocou-a em cima da mesinha de quatro cadeiras.
_ O que é isso? - Perguntou André.
_ São camisetas. Porque você não usa mais nenhuma delas?
Ainda mais abusada, Léia perguntou se ele fazia coleção de coisa velha e suja:
_ Uai! Você não me deixa lavar, não usa, não doa! – Termina Léia.

Eram elas, cada uma, presentes enfileirados numa cronologia de amores e dores, lembranças bobas e apaixonadas. Relutância. Ele não pensava em desfazer-se.

_ Léia. Sabe, fotos? Você gosta de fotos que eu sei. Eu não sou fotógrafo, mas me lembro como se fosse em um álbum, o nome de cada camiseta. Não o nome da camiseta, mas de quem me deu. Ah, você entende.

De um jeito meio vago, André continuou:
_ A vermelha com listras se chama Fá. A branca, regata, essa meio larga e surrada, se chama Lú. Tem essa preta, desbotada, ela se chama Cris.
_ Hummm, entendi, entendi. – Disse Léia, que na verdade não havia entendido muito bem não.

Um dia depois, quase no mesmo horário daquela conversa, logo que André voltou pra casa, tratou de procurar a sacola preta e juntar todas as camisetas. Ele precisava tirar do armário todos aqueles vestígios e vestir algo novo. Bem outro.

Fez questão de doar e, por isso, escolheu um lugar para levar tudo aquilo. Pensou durante a noite inteira, sobre aquelas camisetas, pensou sobre cada situação, recordando-se das pequenas sensações. que causaram Na manhã seguinte, deixou seu prédio em direção ao trabalho, determinado, com uma mochila em uma mão e a sacola preta em outra. Perto da livraria, havia um orfanato que vira e mexe colocava uma placa de “Aceitamos doações. Sua atitude é abençoada por Deus”. Era pra lá que ele iria. Quando chegou, abriu a grande porta de madeira e pediu informação na recepção.
_ Oi, quero fazer uma doação. Tem bastante camiseta e umas duas bermudas.
_ Ah, que bom! – Respondeu uma mulher de cabelo curto e liso. Simpática.

Assim, num impulso muito peculiar, a recepcionista abriu a sacola preta e viu as camisetas mais limpas e sem manchas que já havia recebido. Afinal, as únicas marcas que haviam, estavam na memória, tinham ficado apenas no passado de um cara com o coração partido.

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5 comentários:

Carol Freitas disse...

Oi!

Gostei muito da analogia que encontrei aqui...acho justo doar um pedaço das dores, quando possível..

Belo texto!

Beijo!

Carol Freitas disse...

Oi!

Gostei muito da analogia que encontrei aqui...acho justo doar um pedaço das dores, quando possível..

Belo texto!

Beijo!

Carol Freitas disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Carol Freitas disse...

Apareci! =)

Vc já chegou lá, sim. Exatamente pq não os criou, vc já os carrega...essa, é a grande sacada ;)

Apareça!
Beijo!

Tathiana Treuffar disse...

Cris, querido!
também estou com saudades...
Obrigada pelas suas mensagens e pela indicação do blog. :)

Venho te ler depois, com calma,
quero estar inteira para absorver tuas palavras...
Amo!