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sábado, 13 de março de 2010

AS IRMÃS DE BUÇO

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Elas eram gêmeas. Viviam sozinhas desde a morte do pai, que pegou tétano no dia em que se cortou com sua insubstituível lâmina de barbear, enferrujada há pelo menos dez anos. A mãe, perderam ainda na infância. Eram tão pequenas que nem se lembravam como foi, ou o que aconteceu. Mal haviam saído das fraudas.

Cresceram entre penugens caídas no chão e muito vapor, vindos das toalhas que levavam aos clientes de seu pai na barbearia. Aquele era o estabelecimento comercial mais frequentado na cidade depois da igreja. Como não haviam salões de cabeleireiros, ele mesmo era quem dava conta de todos os três mil habitantes da cidadezinha. Ele e suas filhas.

Podia-se dizer que ambas meninas eram idênticas. Idênticas ao pai. Cabelos bem pretos, bem crespos e compridos, sobrancelha grossas, quase juntas, lábios acinzentados. Na verdade os lábios de Abel eram um pouco rosados. Alias, o único problema entre as duas eram o ciúme bobo de Abel pelo nome de sua irmã Amel, um pouco mais bonito e não tão masculino quanto o seu.
Abel, foi sempre a mais calada e contida,  vivendo à espreita de Amel, mais amável, porém rígida, como ela mesma se descrevia.

Mesmo na adolescência, época em que a maioria das pessoas parece uma coisa só, feias e mal arranjadas entre tantas transformações, a maior diferença entre as duas não eram seus nomes, mas o jeito como eram conhecidas no colégio, na igreja, na rua, na cidade inteira: as irmãs de buço. Não que elas gostassem do apelido, mas era difícil lidar com esse marcante traço de suas naturezas. “Herança da avó”, dizia seu pai.

Já adultas e mulheres como tornaram-se, Abel e Amel criaram mais pelos pelo corpo, que tratavam de remover nas sessões de depilação que começaram a oferecer na barbearia, agora sobre seus comandos, fruto dos ‘novos tempos’, mais modernos, que exigiam um pouco mais de vaidade naquela pequena e escondida cidade do sul. Todos os dias, pelo menos meia dúzia de vizinhos, amigos desde a infância e as espertas senhorinhas de cabelos brancos passavam pelas poltronas antigas de corte.

 Numa certa manhã, enquanto Amel dava conta de uma freguesa, Abel passou mal ali mesmo. Teve um enjôo e expeliu um tufo de cabelo por entre seus lábios roxos. Ela estava grávida. De quem, de onde ou desde quando, nem ela poderia dizer. Ninguém jamais poderia imaginar tudo o que estava por vir.

O possível pai da criança, 14 anos mais velho, já era  avô e marido da parteira mais experiente da região, ainda viva. Zéfa, esse era seu nome. Ele não largaria de jeito algúm sua esposa, tinha medo de sua reza. “Quem poderia imaginar?” Dizia Zéfa por ai.


Meses depois, no parto da criança, Amel, que havia tricotado o primeiro conjuntinho de lã do bebê, sonhou que viria uma menina e acertou. Mas ela era negra. Não era polaca como o pai apontado pela irmã e nem cinza como a mãe.


Sentindo-se traída, com a grande mentira escondida pela irmã, Amel decidiu nunca mais raspar seu vigoroso buço e, daquele dia em diante, não depilou qualquer outra mulher na cidade. Nenhuma. A criança cresceu feliz, apenas confundindo sua mãe, em meio a algumas mulheres peludas.


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NOVO CONTO
Após tanto tempo sem escrever um até o fim, aqui está.
Espero que gostem, é apenas um recomeço. Não deixe
de conferir "Como cultivar orquídeas", postado aqui em
2008.



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